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Célio Braga − bela aparência



Taisa Palhares


À primeira vista, poderíamos pensar que o conjunto de desenhos e pinturas de Célio Braga se filia diretamente a tendências contemporâneas da arte abstrata, posto que a construção dos trabalhos a partir de uma trama delicada de faixas brancas lembra a pureza formal de alguns artistas pós-minimalistas como o pintor norte-americano Robert Ryman (1930). Há neles a presença do gesto repetitivo e despersonalizado, cujo sentido imediato se oferece na própria ação. No entanto, a suposta ordem desses monocromos brancos é estranhamente perturbada pela irregularidade espacial entre as listras e pela luminosa vibração colorida que surge de suas frestas, o que traz à tona a espessura turva de uma corporeidade que recusa qualquer tipo de virtualidade estéril. Percebe-se um jogo entre encobrimento e desvelamento, no qual a cor branca deixa de significar o grau zero da representação pictórica para adquirir características de matéria opaca, cuja função é tanto “purificar” como eclipsar a banalidade mundana do material que serve como fundo.

Pois os tons de rosa, cinza, preto, laranja, amarelo, azul, vermelho e verde desses trabalhos não são feitos de qualquer tipo de tinta. Trata-se, na verdade, de fitas coloridas do Senhor do Bonfim que o artista compra em grande quantidade no centro de São Paulo, e com as quais realiza um painel colorido como base sobre a qual irá tecer suas faixas, segundo o movimento e a direção sugeridos pelas próprias fitas, deixando entrever uma ou outra palavra, como momentos de uma prece sussurrada.

Há, com efeito, uma dissonância proposital entre a aparência dessas obras e sua matéria; um lirismo minimalista ambíguo que nos põe em diálogo com a produção de artistas como Felix Gonzalez-Torres (1957-1996). O desejo, a fé, a crença, e tantas outras simbologias culturalmente encarnadas por essas fitinhas, são revestidas de uma bela aparência cujo sentido não deixa de ser irônico e, por que não dizê-lo, político.

Por outro lado, pode-se dizer que esses trabalhos dizem respeito ao desejo de purificação e cura que se daria na convivência não contraditória entre fé e razão, como sugerem os desenhos em que Braga utiliza as mais diversas bulas de remédios – todas “usadas” – como pano de fundo de suas sobreposições brancas. Vale lembrar que esse encontro se configura como um traço marcante de nosso hibridismo cultural, com o qual o artista, que passou os últimos anos no exterior, não deixa de se impressionar.

Mas o principal é que tanto nos desenhos como nas pinturas a sedução da forma tem uma presença superlativa. Célio Braga reveste de encantamento experiências dolorosas e procedimentos incisivos (como cortar, perfurar, enfaixar, costurar, cavar) que, diga-se de passagem, se aproximam tanto do universo do artesanato popular como do mundo das manipulações científicas. Sua poética vive na dubiedade entre a beleza e a violência, entre o pessoal e o anônimo, o coletivo e o biográfico, enfim, o lírico e o político.

E o distanciamento e a delicadeza quase transcendente com que os sentimentos de perda, morte e degenerescência orgânica são vislumbrados a partir de suas obras funcionam, em última instância, como uma maneira de afirmar, com ênfase redobrada, mas sem abrir mão de certa leveza, o caráter inevitável de tais acontecimentos.

Taisa Palhares
Setembro de 2011