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Célio Braga

O fazer que se revela



Dionea Rocha Watt


Nas séries Ladainhas e Lengalengas, Célio Braga utiliza linhas repetidamente para criar desenhos e esculturas em que superfícies e estruturas pulsam com delicadeza e vigor, revelando um trabalho que se nutre não só de tempo mas também de afetividade – de memórias e vivências, de medos e desejos. Por meio de processos simples porém demorados, o artista transforma os poucos materiais com que trabalha em uma arte que nasce de gestos repetitivos, uma obra marcada por um fazer contínuo.

Em Ladainhas, Célio inscreve linhas coloridas de maneira obsessiva sobre o papel depois de dobrá-lo metodicamente. Partindo da folha plana, branca, imaculada, realiza sucessivas dobraduras ortogonais que marcam o papel, dividindo a superfície em centenas de quadrados e retângulos, criando uma grade estriada em que as dobras são como cicatrizes. Maculando e machucando o papel, o artista cria um espaço onde verte a cor, tecendo-a com milhares de linhas horizontais e verticais. Do acúmulo de linhas sólidas, porém imprecisas, surge a cor evanescente. Célio imbui a cor de uma fragilidade que faz com que seja percebida como se estivesse a ponto de desaparecer ou de apenas surgir, nunca completamente pousada sobre o papel, mas flutuando sobre ele, entre aparição e desaparição. À distância, a cor emerge como uma nuvem que paira sobre essa superfície – já não mais plana, não mais imaculada – como uma forma de carícia; a cor brumosa vertida como um bálsamo sobre esse papel de branco antes “perfeito” e agora, de certa forma, agredido por vincos e grades de linhas traçadas à mão livre com lápis de cor – linhas “imperfeitas” segundo o artista.

Mas esses milhares de linhas desenhadas são visíveis como tais apenas de perto, a uma distância que permite vislumbrar o processo intensivo de trabalho – o ritmo de linhas imbuídas de tantas e tantas horas, linhas do tempo. O tempo também se faz presente no ritmo daquela dança típica do encontro com a arte, em que o espectador que se aproximou se afasta novamente para ter uma visão geral. E volta a ver a cor como se fosse sólida e ao mesmo tempo imaterial; uma só cor ou uma gradação suave de tons; uma cor aproximada que reflete em seu nome essa aproximação: avermelhada, amarelada, azulada, esverdeada...

O trabalho de Célio Braga fala de aproximações, requer tempo e um olhar atento que combine proximidade e distanciamento. Assim como o trabalho de Agnes Martin, que o artista muito admira,  seus trabalhos recentes são estudos profundos da interação entre cor e linha, e de sua interação com o branco do papel e com a luz, com o espaço e com o espectador. Cor e linha interagem com a superfície modulada, modulando sua presença e ritmo como as vozes que entoam ladainhas, vozes que sussurram pedidos.

Na série Lengalengas, Célio Braga transforma a linha colorida em uma estrutura elástica que, por meio de dobras, se movimenta em configurações variadas. Utilizando como suporte caninhos de metal que ele recobre com fitinhas religiosas e fragmentos de tecido de diversas cores e texturas, o artista constrói objetos e tece ritmos – cortando, amarrando, unindo, cobrindo, dobrando e desdobrando. Suas ações repetitivas transformam tecidos que vêm de roupas antigas de sua família ou de amigos – paninhos impregnados de traços de uma história pessoal e de memórias – e fitinhas do Bonfim – elementos que carregam em si uma história de fé e de superstição, de desejos e de esperança.

Dando milhares de nós, Célio vai amarrando  retalhos e fitinhas até cobrir o metal por completo. Unidos pelo tecido que os recobrem, os caninhos viram linhas que se articulam; objetos sem forma fixa que se movem com liberdade, pois o artista não determina a forma final mas a deixa aberta a futuras transformações. Esses objetos escultóricos tampouco têm lugar fixo: podem ser colocados no chão, sobre  pedestais ou móveis,  em caixas ou vitrines, pendurados no teto ou na parede, nas quinas ou nos cantos, apoiados nos peitoris das janelas ou encostados nos rodapés... Descendentes dos Bichosde Lygia Clark e de sua mobilidade, e também dos tapetinhos de nós, dos tecidos bordados e das cordas de couro trançado, os Lengalengas– objetos mamulengos, perambulantes, policromáticos – ocupam e transformam o espaço, e mexem com o espectador que mexe com eles.

Ao escolher Ladainhas e Lengalengas como títulos de duas séries de trabalhos, Célio Braga demonstra sua cumplicidade com a ideia de repetição – ladainhas e lengalengas são invocações e histórias que repetem elementos; tornam a dizer o que já foi dito para, assim, se fixarem na memória. O labor repetitivo do artista se manifesta em abstrações geométricas de gestos intensivos e insistentes, e numa feitura impregnada de memórias afetivas e de histórias. Histórias sem começo nem fim, histórias que se repetem e são repetidas mesmo que não se saiba do que se tratam, pois aqui o que conta não é o saber, mas o saber repetir. Das ladainhas ouvidas na infância – entoadas nas novenas, nas casas e nas ruas – não ficaram marcadas as palavras mas sua musicalidade, o ritmo de uma infância caipira. Das lengalengas não despontou o tédio, mas a nova possibilidade que nasce com cada iteração.

Criado no interior de Minas Gerais, Célio Braga cresceu ouvindo histórias, cantigas, ladainhas e lengalengas. Seu universo familiar era amarrado pelas histórias contadas por sua avó materna – sobre a gente e os “causos” da fazenda, sobre os costumes e superstições que viram hábitos, rezas para atrair as coisas boas e espantar as ruins, contos de fantasmas e de almas – narrativas de vida ou inventadas que constituíam um universo ao mesmo tempo lúdico e prático. Sua avó desfiava histórias enquanto se ocupava de fazer coisas – como cortar panos para as colchas de retalhos – e nesse processo criava outras histórias, histórias  do fazer.[1] Além de tecer histórias, a avó tecia colchas no tear manual, fiando o algodão que brotava naquela terra, transformando-o em linhas que tingia com as cores simples dos pigmentos naturais. A mãe de Célio, de mãos prenhas e inquietas, seguia o exemplo de sua própria mãe e ocupava o tempo fazendo coisas: costurando as roupas da família e remendando aquelas já furadas; bordando vestidos e o bolso da camisa do filho; preparando o bolo da mesa farta com a farinha que ela mesma moía, convertendo em quitute o milho da fazenda. O ambiente familiar era um espaço de troca de experiências, de saberes e de fazeres. Foi assim que, na infância, Célio descobriu que as coisas ao seu redor eram resultado de um fazer incessante. 

Entretanto, essa descoberta permaneceu velada por muito tempo. Mesmo se manifestando silenciosamente em sua maneira de trabalhar, a relação afetiva com o fazer só se mostrou com mais força quando o artista voltou a viver no Brasil, depois de muitos anos passados na Europa.  Ao retornar ao seu país de origem, Célio retorna também ao universo que a princípio quis negar; “o universo colorido de panos e linhas, de colchas de retalhos, de tapetinhos, de fronhas e lençóis bordados, forros de mesa e... na doce lembrança do meu nome bordado em azul, em ponto de cruz, na gibeira da minha camisa branca.”[2] 

Célio Braga, contudo, não tenta recuperar o passado ou fixar a memória, mas se alimenta da necessidade de fazer e de repetir; de criar, destruir e voltar a fazer. Sua arte emerge de uma relação com formas e processos que, além da influência da arte moderna e contemporânea mundial, se nutre do fazer de uma infância interiorana, da memória afetiva dessa vivência. Mescla o caipira com o cosmopolita, o rural com o urbano, a geometria das colchas de retalhos e dos tapetinhos feitos pelos artesãos com a geometria das obras de arte minimalistas. Seu trabalho reflete um forte interesse na cultura popular brasileira – em seus rituais e objetos, em materiais imbuídos de simbolismo e de crenças, em seus processos artesanais repetitivos. O trabalho feito com esforço e o fazer artesanal são elementos cruciais em sua produção artística. Os trabalhos recentes de Célio Braga sintetizam a essência de sua obra: índice de um fazer incessante, seu trabalho é o fazer que se revela.



Dionea Rocha Watt
Fevereiro de 2014



[1]    A estreita relação entre a narração de histórias e o fazer remete ao ensaio “O Narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” (1936), do crítico alemão Walter Benjamin. Segundo ele, a arte de narrar histórias possibilita a troca de experiências: "Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual." [Benjamin: 205]. Walter Benjamin, “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, in Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (São Paulo: Brasiliense, 1994), pp. 195-221.



[2]     Conversa com o artista, fevereiro de 2014.