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ENVIESADO
Tálisson Melo
Aos 19 anos, no centro de Madri, dediquei uma manhã a passar por lojas de roupas sociais masculinas. Muitas calças pretas e camisas brancas, alguns tons de azul, cinza e marrom formavam uma paisagem sem sobressaltos. A missão era fazer jus ao investimento da minha mãe ao me mandar dinheiro para comprar uma "roupa melhorzinha” já que eu receberia congratulaciones em um evento público na universidade. Busquei uma camisa confortável e barata, mas que poderia “imprimir bem” a seriedade merecedora de honraria. Vestindo a camisa escolhida, a sensação era de que minha pele se fundia com o tecido da roupa e algo em mim se transformava para sempre (?!)… De lá para cá, usei essa camisa por não mais que quatro vezes até meus 26 anos. A guardei inútil no cabide até hoje, o fato de que ainda me caia bem revela uma fôrma persistente em relação ao meu corpo mais adulto.
Agora, aos 34 anos, escrevendo este texto para a exposição de Célio Braga — que decidimos intitular de enviesado —, me conformo com a ideia de entregar a seus cuidados essa camisa carregada de uma memória singular da ritualização de certa masculinidade/civilidade. Sei que essa camisa será desconstruída em rasgos e cortes a serem esticados e enrolados sobre um chassi de madeira, criando um dos 14 retratos têxteis da série perfect friends - perfect lovers. Cada retrato parte dessa mesma operação de desfazer camisas também dadas por homens com quem Célio mantém alguma relação — são amigos, amantes, companheiros, colegas, conhecidos, pais, filhos, irmãos, sobrinhos, mais jovens e mais velhos, brasileiros, estrangeiros, heterossexuais, bissexuais, homossexuais… Depois, o ato de reconstruí-las por meio da costura e bordado em outra configuração, sobre módulos retangulares de 35 x 30 cm. As distintas cores, padronagens, tipos de tecidos e detalhes como pences, pregas, bolsos, carcelas, etiquetas, botões e casas projetam os aspectos próprios de cada retrato.
Célio trabalha sobre coisas ancoradas em memórias de uso, algo que vai tão junto da pele, a cobrindo e protegendo, mas, principalmente, servindo como fôrma do que já está no mundo agindo sobre o corpo e da maneira como o corpo se coloca no mundo. Há ainda o gesto de desapego em doá-las, de algum modo ligado a despir-se e deixar-se ser tocado, algo próprio das variadas relações entre homens que o conjunto reencena pela presença óbvia do toque, de se poder ver o artista habitar nesses corpos pela pele, do avesso. A pele como matéria mediadora que funde eu e o mundo — “be matter itself!”.[1]
Trabalhos anteriores de Célio trazem a pele fotografada e impressa em papel, que ele perfura e sutura, salientando sua porosidade e permeabilidade como prolongação indistinta entre dentro e fora, das e nas relações, trocas e afetações.[2]Ao destruir as camisas e enquadrar seus fragmentos em outra ordenação para, então, costurá-las de novo, bordando meticulosamente as partes que se sobrepõem e se emaranham, a ação criativa de Célio se dá por horas em um corpo a corpo cheio de impulsos e cálculos, uma negociação constante com os materiais, com seu desejo, sua técnica e seu próprio corpo em trabalho.
Ao conhecer mais sobre a trajetória pessoal e artística de Célio e passar a fazer parte do processo em que vem construindo esses retratos imperfeitos de amigos-amantes, retomei as indagações que Michel Foucault devolvera ao ser entrevistado, em 1981, acerca do modo de vida homossexual:[3]
Quais relações podem ser estabelecidas, inventadas, multiplicadas, moduladas através da homossexualidade?
Como é possível para homens estarem juntos? Viver juntos, compartilhar seus tempos, suas refeições, seus quartos, seus lazeres, suas aflições, seus saberes, suas confidências?
O que é isso de estar entre homens, "despidos", fora das relações institucionais, de família, de profissão, de companheirismo obrigatório?
A resposta aberta à sua própria pergunta indica a possibilidade de se reimaginar as relações, a amizade, a intimidade e a vida comunitária. Isso aparece com muita força no trabalho de Célio. Esse desejo-inquietação convida a se reinventar relações variáveis, individualmente moduladas, ainda sem fôrmas, que se projetam para além do ato sexual entre homens ou da ideia de fusão amorosa das identidades — assim, cada retrato vai se fazendo e ganha o nome de quem vestia a peça de roupa desconstruída. Estabelecer um modo de vida homossexual, introduzindo o prazer e o amor onde só se via a lei, a regra ou o hábito, é o que perturba a lógica tradicional da família nuclear e a heteronormatividade. Esse conjunto de retratos bordados pode ser visto como materialização das diversas possibilidades de se tramar relações, construir formas únicas e maleáveis de contatos e conexões com outros homens. Na urdidura do cuidado, do prazer, da intimidade, ética, cumplicidade, companheirismo, erotismo e desejo, as peças evidenciam rearranjos relativamente reversíveis, abertos a outras reconfigurações:
A homossexualidade é uma ocasião histórica de reabrir virtualidades relacionais e afetivas, não tanto pelas qualidades intrínsecas do homossexual, mas pela posição de "enviesado", de alguma forma, as linhas diagonais que ele pode traçar no tecido social, as quais permitem fazer aparecerem essas virtualidades.
Com a fôrma das camisas sociais e com os gestos de ajustá-las e abotoá-las, imagens de um corpo disciplinado rotinizam o estereótipo de masculinidade associado à racionalidade, autoridade, higiene, assepsia, seriedade, profissionalismo, ordem e controle. As camisas brancas de punhos estreitos, em particular, enfatizavam a uniformização de uma identidade coletiva masculina associada ao “neutro”, ao “universal”, valores associados à performance hegemônica de gênero, classe e raça na sociedade burguesa desde pelo menos meados do século XIX.[4] Já contamos com uma história da relação entre moda e cultura queer permeada por expressões de inconformação polivalentes, a apropriação das camisas nas festas, ruas e passarelas afirmam a artificialidade das ordenações binárias do feminino e do masculino, gerando outras configurações, às vezes tão radicais que abalam até mesmo a noção de uma fôrma humana. No entanto, as camisas convencionais empregadas por Célio nesses trabalhos recentes chamam mais atenção para a manutenção dessa fôrma de corpos masculinos, os interstícios ambíguos entre adequação, repressão, docilidade e esconderijo de um lado, e erotismo, despojamento e ironia camp, do outro. Com a desconstrução de cada uma e sua reconstrução “enviesada”, nas direções oblíquas das relações vivas, emerge o desalinho, o entortado, o inadequado.
Em jogo com as casas desabotoadas, alguns buracos e falhas na cobertura da quase-superfície se fazem às vezes mais ou menos evidentes, porém, sempre ruidosos ao olhar mais atento e aproximado. Nitidamente propositais, essas lacunas permitem cada retrato respirar e palpitar na iminência de serem desfeitos novamente ou alterados por mais emendas, outras camadas de pano, alguma pele ou corpo que se interponha ali, antes da parede. A mesma coisa acontece com as sobras ou dobras que se desprendem do retângulo ou do plano como abscessos, apêndices, cicatrizes ou tentáculos. Seriam pistas de um desinteresse ao enquadramento absoluto, evidência da vontade de transbordamento em que cada relação implica. Ambos elementos reforçam o desapego pelo acabamento, o esmero objetivado no bordado também ostenta o erro, o desvio, o remendo e as correções mal-sucedidas, indícios das negociações em termos nunca totalmente sem atritos ou opacidades, entre corpo-mente e objeto-matéria, entre eu e outro — como no que se vive em relação.
A historiadora de arte e psicanalista Rozsika Parker[5] mapeou o processo histórico de declínio do status do bordado do fim da Idade Média até sua consolidação na constelação das “artes menores”. Também no século XIX, com a divisão arte/artesanato, o bordado passava de uma forma de arte elevada praticada por homens e mulheres, particularmente na Inglaterra, para ser visto como ofício inferior e feminino marginalizado ao âmbito doméstico, do que é feito por mulheres e “por amor”. Isso coloca a prática de bordar como central na afirmação de uma ideologia hegemônica da feminilidade. Parker aponta para os dados de pesquisas realizadas no final dos anos 1970 — quando se afirmava que “o bordado é o passatempo preferido de 2% dos homens britânicos, mais ou menos a mesma quantidade daqueles que frequentam a igreja regularmente”. Ela mostra a permanência desse estereótipo e as assimetrias embutidas no interior da divisão sexual do trabalho: “só maricas e mulheres costuram e vão a cultos”.[6]
Mais recentemente, o historiador Joseph McBrinn,[7] e em diálogo direto com Parker, analisa o papel do bordado na criação e subversão da masculinidade: embora se tenha registros da presença do bordado na educação básica de meninos da classe operária no século XIX para acalmá-los; bem como nas dinâmicas tradicionais de ócio dos marinheiros que bordavam presentes para entes queridos sem terem abalada a hipermasculinidade associada a sua profissão; um dos efeitos da centralidade do bordado na “criação da feminilidade” é sua estigmatização como “efeminante” e sua afirmação como uma espécie de “ousado emblema da auto-identificação queer”. Questionando a rigidez da heteronorma em contexto de criminalização da homossexualidade, homens gays bordaram uma codificação íntima de sua vida sexual e afetiva, até mais tarde se ostentar o bordado na celebração camp das possibilidades de sua existência. Longe de afirmar uma essência feminina, gay, queer, dócil e amorosa sobre o bordado, é ainda possível observar como essa prática meticulosa se afirmou historicamente como símbolo de cuidado e amor, sem deixar de se inscrever como uma reivindicação política ruidosa que vai morando nos detalhes.
Ao ver pronto meu retrato, com minha camisa destruída, manchada e recosturada, levando ainda meu nome como título, reconheço algumas dobras de um passado que ainda cabe no corpo, mas que também passa a se desprender de mim. Umas tantas gramas de pó de gesso infiltrado pela pele, entupindo os poros e endurecendo cada articulação, começasse a se esvair. É como se o gesto de Célio pudesse alcançar a musculatura, os nervos, os tendões, liberando o corpo de uma camisa de força interna. No quadro, desfeita e reconfigurada, a camisa chama mais atenção para tudo o que não se conteve e não se moldou. Ao finalizar cada um dos retratos têxteis de perfect friends - perfect lovers com bordado, o trabalho de Célio Braga apresentado em enviesado se insere nessa trama de reinvenções para existência das relações entre homens e da própria ideia de masculinidade, encenando também a repetição do gesto propositivo que vejo enunciado nos últimos versos de um poema de Camila Sosa Villada[8]:
…
Continuemos a nos amar neste pântano de contradições.
Continuemos a nos dar as mãos na rua,
beijos no trem e abraços na grama.
Continuemos a nos vestir de mulheres,
a nos vestir de homem.
Continuemos a perdoar e a amar,
e não nos afastemos do trabalho lento e eficaz do amor…
mesmo que pareça piegas.
A verdade é que há coisas que deixaram de ser óbvias.
[1] Citação direta de As Tentações de Santo Antão de Gustave Flaubert (1874) inscrita na obra Deliriously (2005).
[2] Ernst van Alphen (2006) evoca a noção de skin ego do psicanalista Didier Anzieu para enfatizar a negação da pele como fronteira absoluta entre indivíduo e o mundo no obra de Célio Braga, abordando-a mais como “conectividades íntimas” para afirmar um corpo vulnerável.
[3] De l'amitié comme mode de vie. Entrevista de Michel Foucault a R. de Ceccatty, J. Danet e J. le
Bitoux, publicada no jornal Gai Pied, nº 25, abril de 1981. Tradução por Wanderson Flor do Nascimento e publicada no site Espaço Michel Foucault (2001).
[4] A relação da moda com os estereótipos de gênero é escrutinada por Joanne Entwistle em The Fashionable Body: Fashion, Dress & Modern Social Theory (2015).
[5] Rozsika Parker. The Subversive Stitch: Embroidery and the Making of the Feminine (1984).
[6] Sobre a presença do bordado na arte brasileira, com indicação de outras autorias masculinas que o empregaram, ver o catálogo da exposição Transbordar: transgressões do bordado na arte, curada por Ana Paula Simioni no Sesc Pinheiros, São Paulo, com textos de Rosana Paulino e Carmen Cordero Reiman (2020-2021).
[7] Joseph McBrinn. Queering the Subversive Stitch: Men and the Culture of Needlework (2020).
[8] Publicado primeiramente em 2015, o poema foi traduzido do espanhol por Joca Reiners e publicado na coletânea A namorada de Sandro(2024).
Agora, aos 34 anos, escrevendo este texto para a exposição de Célio Braga — que decidimos intitular de enviesado —, me conformo com a ideia de entregar a seus cuidados essa camisa carregada de uma memória singular da ritualização de certa masculinidade/civilidade. Sei que essa camisa será desconstruída em rasgos e cortes a serem esticados e enrolados sobre um chassi de madeira, criando um dos 14 retratos têxteis da série perfect friends - perfect lovers. Cada retrato parte dessa mesma operação de desfazer camisas também dadas por homens com quem Célio mantém alguma relação — são amigos, amantes, companheiros, colegas, conhecidos, pais, filhos, irmãos, sobrinhos, mais jovens e mais velhos, brasileiros, estrangeiros, heterossexuais, bissexuais, homossexuais… Depois, o ato de reconstruí-las por meio da costura e bordado em outra configuração, sobre módulos retangulares de 35 x 30 cm. As distintas cores, padronagens, tipos de tecidos e detalhes como pences, pregas, bolsos, carcelas, etiquetas, botões e casas projetam os aspectos próprios de cada retrato.
Célio trabalha sobre coisas ancoradas em memórias de uso, algo que vai tão junto da pele, a cobrindo e protegendo, mas, principalmente, servindo como fôrma do que já está no mundo agindo sobre o corpo e da maneira como o corpo se coloca no mundo. Há ainda o gesto de desapego em doá-las, de algum modo ligado a despir-se e deixar-se ser tocado, algo próprio das variadas relações entre homens que o conjunto reencena pela presença óbvia do toque, de se poder ver o artista habitar nesses corpos pela pele, do avesso. A pele como matéria mediadora que funde eu e o mundo — “be matter itself!”.[1]
Trabalhos anteriores de Célio trazem a pele fotografada e impressa em papel, que ele perfura e sutura, salientando sua porosidade e permeabilidade como prolongação indistinta entre dentro e fora, das e nas relações, trocas e afetações.[2]Ao destruir as camisas e enquadrar seus fragmentos em outra ordenação para, então, costurá-las de novo, bordando meticulosamente as partes que se sobrepõem e se emaranham, a ação criativa de Célio se dá por horas em um corpo a corpo cheio de impulsos e cálculos, uma negociação constante com os materiais, com seu desejo, sua técnica e seu próprio corpo em trabalho.
Ao conhecer mais sobre a trajetória pessoal e artística de Célio e passar a fazer parte do processo em que vem construindo esses retratos imperfeitos de amigos-amantes, retomei as indagações que Michel Foucault devolvera ao ser entrevistado, em 1981, acerca do modo de vida homossexual:[3]
Quais relações podem ser estabelecidas, inventadas, multiplicadas, moduladas através da homossexualidade?
Como é possível para homens estarem juntos? Viver juntos, compartilhar seus tempos, suas refeições, seus quartos, seus lazeres, suas aflições, seus saberes, suas confidências?
O que é isso de estar entre homens, "despidos", fora das relações institucionais, de família, de profissão, de companheirismo obrigatório?
A resposta aberta à sua própria pergunta indica a possibilidade de se reimaginar as relações, a amizade, a intimidade e a vida comunitária. Isso aparece com muita força no trabalho de Célio. Esse desejo-inquietação convida a se reinventar relações variáveis, individualmente moduladas, ainda sem fôrmas, que se projetam para além do ato sexual entre homens ou da ideia de fusão amorosa das identidades — assim, cada retrato vai se fazendo e ganha o nome de quem vestia a peça de roupa desconstruída. Estabelecer um modo de vida homossexual, introduzindo o prazer e o amor onde só se via a lei, a regra ou o hábito, é o que perturba a lógica tradicional da família nuclear e a heteronormatividade. Esse conjunto de retratos bordados pode ser visto como materialização das diversas possibilidades de se tramar relações, construir formas únicas e maleáveis de contatos e conexões com outros homens. Na urdidura do cuidado, do prazer, da intimidade, ética, cumplicidade, companheirismo, erotismo e desejo, as peças evidenciam rearranjos relativamente reversíveis, abertos a outras reconfigurações:
A homossexualidade é uma ocasião histórica de reabrir virtualidades relacionais e afetivas, não tanto pelas qualidades intrínsecas do homossexual, mas pela posição de "enviesado", de alguma forma, as linhas diagonais que ele pode traçar no tecido social, as quais permitem fazer aparecerem essas virtualidades.
Com a fôrma das camisas sociais e com os gestos de ajustá-las e abotoá-las, imagens de um corpo disciplinado rotinizam o estereótipo de masculinidade associado à racionalidade, autoridade, higiene, assepsia, seriedade, profissionalismo, ordem e controle. As camisas brancas de punhos estreitos, em particular, enfatizavam a uniformização de uma identidade coletiva masculina associada ao “neutro”, ao “universal”, valores associados à performance hegemônica de gênero, classe e raça na sociedade burguesa desde pelo menos meados do século XIX.[4] Já contamos com uma história da relação entre moda e cultura queer permeada por expressões de inconformação polivalentes, a apropriação das camisas nas festas, ruas e passarelas afirmam a artificialidade das ordenações binárias do feminino e do masculino, gerando outras configurações, às vezes tão radicais que abalam até mesmo a noção de uma fôrma humana. No entanto, as camisas convencionais empregadas por Célio nesses trabalhos recentes chamam mais atenção para a manutenção dessa fôrma de corpos masculinos, os interstícios ambíguos entre adequação, repressão, docilidade e esconderijo de um lado, e erotismo, despojamento e ironia camp, do outro. Com a desconstrução de cada uma e sua reconstrução “enviesada”, nas direções oblíquas das relações vivas, emerge o desalinho, o entortado, o inadequado.
Em jogo com as casas desabotoadas, alguns buracos e falhas na cobertura da quase-superfície se fazem às vezes mais ou menos evidentes, porém, sempre ruidosos ao olhar mais atento e aproximado. Nitidamente propositais, essas lacunas permitem cada retrato respirar e palpitar na iminência de serem desfeitos novamente ou alterados por mais emendas, outras camadas de pano, alguma pele ou corpo que se interponha ali, antes da parede. A mesma coisa acontece com as sobras ou dobras que se desprendem do retângulo ou do plano como abscessos, apêndices, cicatrizes ou tentáculos. Seriam pistas de um desinteresse ao enquadramento absoluto, evidência da vontade de transbordamento em que cada relação implica. Ambos elementos reforçam o desapego pelo acabamento, o esmero objetivado no bordado também ostenta o erro, o desvio, o remendo e as correções mal-sucedidas, indícios das negociações em termos nunca totalmente sem atritos ou opacidades, entre corpo-mente e objeto-matéria, entre eu e outro — como no que se vive em relação.
A historiadora de arte e psicanalista Rozsika Parker[5] mapeou o processo histórico de declínio do status do bordado do fim da Idade Média até sua consolidação na constelação das “artes menores”. Também no século XIX, com a divisão arte/artesanato, o bordado passava de uma forma de arte elevada praticada por homens e mulheres, particularmente na Inglaterra, para ser visto como ofício inferior e feminino marginalizado ao âmbito doméstico, do que é feito por mulheres e “por amor”. Isso coloca a prática de bordar como central na afirmação de uma ideologia hegemônica da feminilidade. Parker aponta para os dados de pesquisas realizadas no final dos anos 1970 — quando se afirmava que “o bordado é o passatempo preferido de 2% dos homens britânicos, mais ou menos a mesma quantidade daqueles que frequentam a igreja regularmente”. Ela mostra a permanência desse estereótipo e as assimetrias embutidas no interior da divisão sexual do trabalho: “só maricas e mulheres costuram e vão a cultos”.[6]
Mais recentemente, o historiador Joseph McBrinn,[7] e em diálogo direto com Parker, analisa o papel do bordado na criação e subversão da masculinidade: embora se tenha registros da presença do bordado na educação básica de meninos da classe operária no século XIX para acalmá-los; bem como nas dinâmicas tradicionais de ócio dos marinheiros que bordavam presentes para entes queridos sem terem abalada a hipermasculinidade associada a sua profissão; um dos efeitos da centralidade do bordado na “criação da feminilidade” é sua estigmatização como “efeminante” e sua afirmação como uma espécie de “ousado emblema da auto-identificação queer”. Questionando a rigidez da heteronorma em contexto de criminalização da homossexualidade, homens gays bordaram uma codificação íntima de sua vida sexual e afetiva, até mais tarde se ostentar o bordado na celebração camp das possibilidades de sua existência. Longe de afirmar uma essência feminina, gay, queer, dócil e amorosa sobre o bordado, é ainda possível observar como essa prática meticulosa se afirmou historicamente como símbolo de cuidado e amor, sem deixar de se inscrever como uma reivindicação política ruidosa que vai morando nos detalhes.
Ao ver pronto meu retrato, com minha camisa destruída, manchada e recosturada, levando ainda meu nome como título, reconheço algumas dobras de um passado que ainda cabe no corpo, mas que também passa a se desprender de mim. Umas tantas gramas de pó de gesso infiltrado pela pele, entupindo os poros e endurecendo cada articulação, começasse a se esvair. É como se o gesto de Célio pudesse alcançar a musculatura, os nervos, os tendões, liberando o corpo de uma camisa de força interna. No quadro, desfeita e reconfigurada, a camisa chama mais atenção para tudo o que não se conteve e não se moldou. Ao finalizar cada um dos retratos têxteis de perfect friends - perfect lovers com bordado, o trabalho de Célio Braga apresentado em enviesado se insere nessa trama de reinvenções para existência das relações entre homens e da própria ideia de masculinidade, encenando também a repetição do gesto propositivo que vejo enunciado nos últimos versos de um poema de Camila Sosa Villada[8]:
…
Continuemos a nos amar neste pântano de contradições.
Continuemos a nos dar as mãos na rua,
beijos no trem e abraços na grama.
Continuemos a nos vestir de mulheres,
a nos vestir de homem.
Continuemos a perdoar e a amar,
e não nos afastemos do trabalho lento e eficaz do amor…
mesmo que pareça piegas.
A verdade é que há coisas que deixaram de ser óbvias.
[1] Citação direta de As Tentações de Santo Antão de Gustave Flaubert (1874) inscrita na obra Deliriously (2005).
[2] Ernst van Alphen (2006) evoca a noção de skin ego do psicanalista Didier Anzieu para enfatizar a negação da pele como fronteira absoluta entre indivíduo e o mundo no obra de Célio Braga, abordando-a mais como “conectividades íntimas” para afirmar um corpo vulnerável.
[3] De l'amitié comme mode de vie. Entrevista de Michel Foucault a R. de Ceccatty, J. Danet e J. le
Bitoux, publicada no jornal Gai Pied, nº 25, abril de 1981. Tradução por Wanderson Flor do Nascimento e publicada no site Espaço Michel Foucault (2001).
[4] A relação da moda com os estereótipos de gênero é escrutinada por Joanne Entwistle em The Fashionable Body: Fashion, Dress & Modern Social Theory (2015).
[5] Rozsika Parker. The Subversive Stitch: Embroidery and the Making of the Feminine (1984).
[6] Sobre a presença do bordado na arte brasileira, com indicação de outras autorias masculinas que o empregaram, ver o catálogo da exposição Transbordar: transgressões do bordado na arte, curada por Ana Paula Simioni no Sesc Pinheiros, São Paulo, com textos de Rosana Paulino e Carmen Cordero Reiman (2020-2021).
[7] Joseph McBrinn. Queering the Subversive Stitch: Men and the Culture of Needlework (2020).
[8] Publicado primeiramente em 2015, o poema foi traduzido do espanhol por Joca Reiners e publicado na coletânea A namorada de Sandro(2024).